Lei Maria da Penha: a história que mudou o Brasil

Conheça a história por trás da Lei Maria da Penha, a luta de uma mulher que transformou a legislação contra a violência doméstica no Brasil.

Lei Maria da Penha
Reprodução: Gerada através do ChatGPT (Referência: Lei Maria da Penha)

A Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006, não é apenas uma norma jurídica: é símbolo de resistência, de transformação social e de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher. Por trás de sua criação, há uma história verídica, marcada por dor, luta e persistência. Este artigo revisita essa trajetória, contextualizando o cenário histórico do Brasil, a atuação de organismos internacionais e os avanços conquistados — e ainda pendentes — em quase duas décadas de sua promulgação.

O caso Maria da Penha: quem é a mulher por trás da lei?

Maria da Penha Maia Fernandes é uma biofarmacêutica cearense, nascida em 1945, que teve sua vida transformada ao sofrer duas tentativas de feminicídio praticadas por seu então marido, o economista e professor universitário colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. Em 1983, ele tentou matá-la com um tiro enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica. Meses depois, tentou eletrocutá-la durante o banho.

O caso, embora grave, foi arrastado por mais de 20 anos no sistema judiciário brasileiro, com sucessivos recursos e manobras protelatórias. Durante esse período, Maria da Penha não apenas lutava por sua recuperação física e emocional, mas também por justiça — e pela sobrevivência de outras mulheres que, como ela, eram vítimas silenciosas de agressões dentro de casa.

A violência doméstica no Brasil antes da lei

Antes da criação da Lei 11.340/2006, o ordenamento jurídico brasileiro tratava a violência doméstica como uma questão menor, geralmente resolvida por meio de medidas paliativas, como cestas básicas ou pequenas multas. A lógica patriarcal e a naturalização da violência dentro do ambiente familiar eram predominantes. Não existiam mecanismos de proteção específicos para as mulheres agredidas, nem tampouco um entendimento institucional sobre a complexidade da violência de gênero.

Casos de agressão física, psicológica, moral e sexual eram frequentemente minimizados pelas autoridades, e os agressores raramente enfrentavam punições proporcionais aos seus crimes. Era comum que mulheres desistissem das denúncias por medo, falta de apoio ou pela ineficácia das medidas judiciais vigentes.

A luta por justiça: 20 anos de impunidade

Após as tentativas de assassinato, Maria da Penha passou a viver com sequelas graves. O processo contra seu agressor tramitou lentamente, refletindo a morosidade do sistema judicial. O primeiro julgamento só ocorreu em 1991, oito anos após o crime, resultando em uma condenação de 15 anos de prisão. No entanto, a decisão foi anulada. Em 1996, novo julgamento reduziu a pena para 10 anos e seis meses, mas Heredia só começou a cumprir a pena em regime fechado em 2002 — quase 20 anos depois dos crimes.

Diante da inércia do Estado brasileiro, Maria da Penha levou sua denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), com o apoio do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). O caso se tornaria um marco internacional.

A atuação da OEA e a condenação internacional do Brasil

Em 2001, após avaliar o caso, a OEA responsabilizou o Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância à violência doméstica. Essa foi a primeira vez que o Brasil foi condenado internacionalmente por violar os direitos humanos de uma mulher. A decisão pressionou o país a adotar medidas efetivas para combater esse tipo de violência, especialmente no ambiente familiar, onde a impunidade reinava.

A repercussão internacional, somada à mobilização de movimentos feministas, organizações da sociedade civil e organismos públicos, impulsionou o debate sobre a criação de uma lei específica que garantisse proteção efetiva às mulheres e punisse com rigor os agressores.

A criação da Lei 11.340/2006: marcos e bastidores

O processo legislativo que culminou na criação da Lei Maria da Penha envolveu amplos debates com juristas, entidades de defesa dos direitos das mulheres e parlamentares. O texto legal foi inspirado em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção de Belém do Pará.

Aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada em agosto de 2006, a Lei 11.340 entrou em vigor no mesmo mês, instituindo um novo paradigma no enfrentamento à violência doméstica. Pela primeira vez, o Brasil reconhecia que esse tipo de violência exigia tratamento jurídico específico, com medidas protetivas urgentes, endurecimento de penas e criação de juizados especiais.

Os principais avanços trazidos pela legislação

A Lei Maria da Penha representou uma revolução legislativa e social. Ela passou a considerar cinco formas de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, sexual, moral e patrimonial. Também proibiu a aplicação de penas alternativas nos casos mais graves e determinou o afastamento imediato do agressor do lar em situações de risco.

Além disso, a lei estabeleceu a criação de Delegacias da Mulher, casas-abrigo, centros de reabilitação para agressores e programas de assistência jurídica, psicológica e social para as vítimas. Outro avanço foi a agilidade na concessão de medidas protetivas, como a proibição de contato do agressor com a vítima, a fixação de distância mínima e a possibilidade de prisão preventiva.

Dados e impactos após a promulgação

Desde a promulgação da Lei Maria da Penha, houve um crescimento significativo nas denúncias de violência doméstica. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, milhões de mulheres passaram a buscar apoio institucional após sofrerem agressões, rompendo o ciclo de silêncio que por décadas prevaleceu.

Apesar disso, o número de feminicídios continua alarmante. Somente em 2023, o Brasil registrou mais de 1.400 casos de feminicídio, indicando que a lei, embora eficaz, ainda enfrenta desafios estruturais em sua implementação. Faltam recursos, equipes especializadas e políticas públicas em diversos estados e municípios para garantir o cumprimento integral da legislação.

Críticas, desafios e lacunas atuais

Embora seja considerada uma das legislações mais avançadas do mundo no combate à violência doméstica, a Lei Maria da Penha enfrenta entraves reais. A principal crítica está na dificuldade de acesso aos mecanismos de proteção em regiões mais afastadas ou carentes. Muitas cidades brasileiras não possuem delegacias especializadas, nem juizados específicos, o que compromete a eficácia das medidas protetivas.

Além disso, a cultura do machismo estrutural, o medo da denúncia e a revitimização durante o processo judicial ainda afastam muitas mulheres da busca por justiça. Outro ponto de atenção é o tratamento dado às vítimas LGBTQIA+, que muitas vezes ficam à margem das garantias legais previstas.

A Lei Maria da Penha no contexto global

A Lei Maria da Penha é frequentemente citada em organismos internacionais como um exemplo positivo de legislação de combate à violência doméstica. Países latino-americanos e europeus já estudaram seu modelo para aplicação em suas próprias legislações. Em 2012, a ONU reconheceu a lei como uma das mais avançadas do mundo.

Contudo, a eficácia de uma lei não depende apenas do seu conteúdo, mas da forma como é aplicada. Nesse sentido, o Brasil ainda precisa fortalecer seu sistema de justiça e ampliar a conscientização social para que a norma se traduza, de fato, em proteção e dignidade para todas as mulheres.

O legado de Maria da Penha e a luta contínua das mulheres brasileiras

Hoje, Maria da Penha é símbolo de resistência e de mudança. Sua história deixou de ser apenas pessoal e passou a representar a de milhares de mulheres brasileiras que, com coragem, romperam o silêncio. Em 2009, ela fundou o Instituto Maria da Penha, com o objetivo de fiscalizar a implementação da lei e promover políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher.

O legado dessa luta ultrapassa os limites do jurídico e toca o campo da educação, da cultura e da cidadania. A cada mulher encorajada a denunciar, a cada agressor responsabilizado, a cada criança protegida de um ambiente violento, a sociedade dá um passo em direção à equidade e à justiça.

Leia também: Resumo da Lei Maria da Penha

 

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